Nas últimas semanas tenho ouvido, informalmente, sobre algumas mudanças setoriais no trânsito da cidade de Santa Maria. A maior parte delas envolvendo a região que eu moro, e a região que eu trabalho, ou seja as ruas do meu uso diário. As mudanças ocorreriam para dar mais fluxo aos veículos, pois existem “gargalos” no fluxo de veículos que precisam ser desafogados. Para mim é impossível não lembrar do Jeff Speck e o livro “Cidades Caminháveis”, onde toda essa engenharia do tráfego é questionada. Afinal, dar mais fluxo dá de fato mais fluxo? E para que fazer uma cidade fácil de cruzar de carro e difícil de circular a pé?
Pelo que entendi, as mudanças ocorreriam entre a Basílica da Medianeira e a Rua General Neto, transformando tudo em um grande sistema binário, onde sempre uma rua vai e outra volta. Isso entrega mais fluxo e velocidade de veículos para essas ruas, e “facilita” o deslocamento. Mas esse deslocamento tem como direção o centro da cidade, ou a saída da cidade, como se a cidade estivesse sendo planejada para quem vem de longe, ou mora longe, tivesse mais facilidade de acessar o centro de carro, e para mim isso faz muito pouco sentido.
Esse tipo de planejamento “carrocêntrico” no geral não se resolve nunca, e as obras só vão ficando mais caras e a cidade mais trancada ainda. Os estudos de demanda induzida demonstram isso há mais de 40 anos. Para quem não está familiarizado ao conceito, Aqui a explicação do Jeff Speck no livro Cidades Caminhaveis, “demanda induzida é o nome que se dá ao que ocorre quando o aumento da disponibilidade de ruas reduz o custo do tempo de dirigir, fazendo com que as pessoas dirijam mais e impedindo quaisquer redução de congestionamento”. Nem a rica Los Angeles, com múltiplas pistas, conseguiu resolver a mobilidade dessa maneira. Ou seja, nenhuma cidade do mundo resolveu seu problema de mobilidade aumentando pistas e priorizando o fluxo de carros, é uma batalha perdida. E não estou nem entrando no lado verde da coisa, onde o carro e os combustíveis fósseis são um dos vilões.
Além disso, dar mais fluxo de veículos para uma rua parece que tem só consequência no carro, porém esse aumento de fluxo, seja por mão única ou por proibição e estacionamento, cria uma série de impactos aos principais usuários da cidade, ou seja, as pessoas.
Ainda com dados trazidos por estudos que aparecem no livro do Jeff Speck temos:
- Ruas que não têm “proteção ao pedestre” (que na maioria das vezes se dá por carros estacionados), tem menor índice de fluxo de pessoas circulando a pé, pois o carro cruza mais perto, o que torna o caminhar mais desagradável. E isso afeta até a atratividade comercial e de empreender em uma região.
- Ruas que são mão única possuem mais aspectos negativos ainda para a região, veja esse trecho do livro:
“Vias de mão única destroem bairros comerciais por motivos que vão além do tráfego tóxico, principalmente, porque distribuem a vitalidade de forma desigual e, muitas vezes, inesperada. Sabe-se que tais vias já causaram o fechamento de lojas que ficam no trajeto matutino de ida ao trabalho, pois a maior parte das compras é feita na volta, à noitinha. Também criam uma situação segundo a qual metade das lojas nas ruas transversais perde visibilidade, já que estão localizadas atrás dos ombros dos motoristas. Tais vias intimidam os motoristas de fora da cidade, que têm medo de se perder, e frustram os locais, que se irritam com os deslocamentos circulares e semáforos adicionais que precisam cruzar para chegar a seu destino.”

Esse tipo de intervenção na via (mão única e proibição de estacionamento) cria um caráter de cruzamento, de passagem em velocidade por essas regiões, tudo em nome de um maior fluxo, privilegiando quem está no carro. No entanto, muitas vezes estas são regiões residenciais, nas quais crianças costumavam brincar na rua, passear com cachorros, ou utilizar a calçada como uma extensão do próprio jardim. Essa mudança de caráter da via acaba implicando tanto nos costumes dos moradores locais, como na sua própria segurança.
Tudo isso vai aumentando o incentivo a pegar o carro, ir morar mais longe, em zonas “mais tranquilas”, o que acaba aumentando o espalhamento da malha urbana e o custo total de funcionamento da cidade. E esse espalhamento exigirá mais fluxo, mais pistas, que gerará mais espalhamento, enfim, é algo sem fim. Não tem espaço para todos irem de carro para trabalho. Não tem obra viária que resolva, e assim gastamos milhões em trânsito, sem resolver a mobilidade.



Aqui, mais um trecho do livro que resume minha implicância com essas mudanças:
“Podemos ter o tipo de cidade que quisermos. Podemos dizer ao carro aonde pode ir e com que velocidade. Podemos ser bem mais do que apenas uma localidade para se atravessar de carro, mas sim, um lugar para se chegar.”
Enfim, estamos em um momento no qual serão feitas várias mudanças que privilegiam quem usa carro, em detrimento da mobilidade ativa, da mobilidade do ciclista e do pedestre. Mas sempre é momento de reflexão e discussão, será que estas mudanças ajudam a cidade, de fato? Qual é o impacto econômico de tais alterações viárias? E o impacto social? Tudo isso deveria ser colocado em debate antes de modificações tão substanciais, no fim é algo muito mais multifatorial do que simplesmente fluxo de carro